Diogo Souza

Escritor e jornalista

Sou seu livro de mistério favorito - Repost | Crônica


A noite estava quente e úmida, a lua estava cheia e enorme no céu. Eu estava num bar com alguns amigos, alguém ria alto numa das mesas na calçada, meus colegas falavam, comiam e bebiam sem parar. Eu estava um pouco entediado em meio àquilo tudo, nunca gostei de grupos com mais de quatro pessoas, pois eu tenho um talento de me isolar neles e ficar sobrando. Minha participação na conversa se resumia apenas em leves e significativas levantadas de sobrancelhas e alguns sorrisos sem dentes e um vasto vocabulário repleto de “hum”, “hunrum”, “han”, “sei...” e coisas do tipo. 

Na verdade, eu já estava começando a ficar tonto e para baixo por causa da bebida e aquele papo todo sobre política – ou sobre a novela das nove, eu não tenho certeza – me deixava enjoado. Eu olhava qualquer ponto na rua e meu pensamento partia para vários lugares: ruas, cidades, países diferentes. Pensava em momentos e em certas pessoas que tentava matar na minha lembrança, mas andava tão desiludido com seres humanos que minha maior preocupação naquela hora era se eu havia colocado ou não a ração para o gato.

Quando dei por mim, o assunto da roda já era outro: EU! 

Que maravilha, agora eu estava no centro de uma discussão especulativa sobre minha vida. De repente, todo o meu comportamento, minhas atitudes e rotinas estavam baseadas em teorias complexas e intricadas fazendo uma ligação cósmica entre o presente e o futuro com reflexões apocalípticas sobre fatos passados, como da vez que dei banho frio em filhotes de gatos e eles morreram afogados. Talvez essa culpa me persiga e por isso não tenha conhecido a verdadeira felicidade. 

Eu nem lembrava que tinha feito isso!

“Sério mesmo, gente? Eu fiz isso?”

“Você é muito fechado,” alguém começou a cachoeira de adjetivos e seguiu sem parar:  “é dissimulado, irritado, amargurado, inseguro, fraco, covarde, indeciso, bêbado.”

Daí, outra voz arriscou discordar:

“Você é muito entregue, verdadeiro, de bem com a vida, alegre, seguro, forte, corajoso, decidido, mas ainda assim bêbado.”

Nada daquilo fazia muito sentido, pois falavam da minha vida e nem parecia. Era legal ver aquelas pessoas que convivem comigo há tanto tempo não saberem absolutamente nada sobre mim. Quer dizer, conhecem apenas uma ou outra faceta que eu deixo aparecer de vez em quando: às vezes para esclarecer, às vezes para confundir. Me tornei mestre nisso de confundir os outros, gosto de estar cercado desse ar de mistério, deixa as pessoas loucas.

“O problema é que isso te atrai gente desnecessária,” alguém concluiu.

“Gente podre”, completou outro.

“Tipo vocês?”, perguntei, ironicamente.

(Risos)

(Eu estava falando sério)

Ao menos, você deve me entender. Imagine um livro de mistério, você começa a ler e vai descobrindo a história, os detalhes, as tramas, motivações, etc. e, dessa forma, você vai se envolvendo mais e mais a cada novo capítulo. No final, quando tudo foi revelado, a verdade escancarada e o mistério reduzido a nada, o que acontece?

“Garçom, próximo livro, por favor!”,  alguém brincou.

É sempre assim, as pessoas se aproximam de você, querem te conhecer e te descobrir. Fingem se interessar, vão te conquistando e, quando finalmente saciam a curiosidade, inflam o próprio ego por terem chegado onde ninguém mais havia chegado, se cansam e vão embora. Abandonam o livro lá.

“Sou um desses livros”.

“Você é meu livro de mistério favorito, baby", uma voz sensual sussurrou ao meu ouvido.

Quote de Reflexão Conto Cara do Espelho

Acho que por isso tenho sido muito pouco lido, tenho evitado sair da minha estante, afinal nem todo leitor está preparado para uma leitura mais densa e envolvente. Até melhor para evitar que se manche, que se amasse ou que se rasgue. Não sou um conto qualquer, não sou um romance e nem mesmo poesia. Sou um amontoado de palavras semioticamente articuladas para criar, inventar, transformar e enganar o mundo.

“Você vai colocar isso no seu blog, né?”, propôs algum ser humano.

“A vida não é um filme, você perde tempo demais criando esses mundos todos...”, parei de ouvir na primeira frase.

Me admira ver discussões alheias sobre minha vida, elas são tão ricas de detalhes e verdades dogmáticas me fazem sentir um gênio no meio de tantas mentes quadradas e fechadas. 

“E esse sorriso?! Fica andando por ai de cabeça erguida e sorrindo pra vida.... Isso irrita, sabia?”

Não... não diminuo ninguém, mas não me rebaixo. Deixo que falem, isso é divertido. O importante é que a verdadeira versão da história esteja protegida, escondida. Só para causar aquele clima noir e intrigar as pessoas com meu sorriso de lado enquanto ando por ai, com meu olhar esnobe e minha taça, brindando debochadamente. O mistério precisa ser mantido.